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Parir é dar à Luz. Mas é também fazer-se dela, rever-se nela, unir-se, sê-la. Luz.

Em setembro de 2020, no segundo parto da minha vida, trazendo à Vida exterior um novo ser a quem chamo Filho, viajei de novo até ao poder dado pelo fazer nascer.

Depois de em 2018 me ter conhecido como mulher-mãe num contexto hospitalar, decidi(mos) escolher uma experiência de parto mais próxima de mim mesma, de nós mesmos, e do que acreditamos – individualmente e como casal – sobre um processo de Nascimento consciente, empoderado, natural, suave, na casa onde todos os dias a vida tem vindo a acontecer.

Havia o desejo de respeitar ritmos, de ouvir e confiar num corpo que, tendo já experienciado o seu poder de parir, se voltaria a abrir a essa passagem de um modo mais conectado, mais natural, ouvindo-se a si mesmo mais do que ao exterior.

Um corpo de 39 anos, inteiro, forte, sereno e à escuta. Um corpo saudável numa mente focada, segura das escolhas e de si mesma. Um corpo-mulher des-vestido de ilusões, consciente dos limites e das limitações, mas também do poder e da força que se esconde e espreita simultaneamente, quando é escutado. Segui, sabendo-me vulnerável e falível, estando pronta para pedir auxílio ao mínimo sinal mas preparada para a viagem de dor, superação e dança a dois que o parto implica.

Seguimos. Durante o processo de gestação, em plena pandemia, trouxemos para perto um parteiro que já conhecíamos desde a primeira gravidez. A empatia era clara entre todos, a vontade de nos acompanharmos também. A escolha foi evidente e suave. Acompanhou o crescimento do meu ventre-casa e conheceu a nossa casa-família, nela fazendo um lugar discreto mas ao alcance de uma mensagem a qualquer hora. Ao longo dos meses a sua presença foi mais além da escuta de batimentos cardíacos, medições ou pressão arterial. Cada encontro criou espaço para, na sua forma direta de estar, sem julgamentos nem rodeios, nos acolher dúvidas, inquietações e preparações. E entre elas, focar-se na mais importante, em todo a caminhada de gerar e conduzir à luz um novo ser: preparar-me para receber e sintonizar no meu próprio poder como Mulher capaz e no do meu companheiro como Homem participante íntegro nesse caminho. Dos seus olhos azuis, a cada encontro, foi saindo a repetição de uma mensagem clara: a sapiência intrínseca da natureza e a possibilidade de nela mergulhar para dela saber retirar toda a força e foco no processo de se abrir à vida. Ter em si tudo o que é necessário. Retirar as inecessárias camadas de medos, histórias alheias e instrumentações e deixar emergir a essência, a simplicidade, a parte natural de uma organicidade ancestral.

Na verdade, todo este mergulho começara já anos antes, rodeada de pessoas semelhantes e abordagens dentro dessa mesma linha. Acompanhando o caminho de outras Mulheres-amigas; de uma doula-ativista que proporcionava encontros de (in)formação e partilha; de profissionais de saúde de várias áreas e também de diferentes famílias feitas assim, de forma natural.

Caminho feito de leituras, partilhas, histórias sobre esta postura tão aparentemente simples e orgânica de receber empoderadamente novas vidas. Tudo, construindo paulatina e quase invisivelmente em mim o forte acreditar nessa capacidade, nesse poder transversal de me apresentar às circunstâncias e de com elas compor.

À medida que a data prevista se aproximava, também a logística interna e externa se ultimavam, numa casa que se queria lugar de acolher. Resguardos, toalhas, material assético, roupas prontas. Ideias sobre lugares de conforto, de apoio, de palco. Parteiro de guarda. 

Debaixo da cama, também bem à mão, uma outra mala preparada meticulosamente. A mala que se agarraria no caso de uma emergência ou do mais mínimo sinal de que as circunstâncias não se compadeceriam com os desejos. Plano B (um hospital mais longe mas com um melhor historial de nascer em família), plano C (a maternidade já conhecida no parto anterior, mais perto) e até um plano D (um outro hospital público para onde uma ambulância seguramente se encaminharia no caso de ser chamada), abertos a que a vida nos levasse por onde tivesse que ser. Um plano de parto esclarecido acompanhava-nos, não impresso mas certamente imprimido no nosso desejo informado de direitos e deveres, de práticas comuns e de margens para negociações.

Por dentro a abertura a que qualquer plano falhasse e a preparação para a surpresa, o inesperado, o imprevisível. Por saber bem demais que a vida contém mais imaginação do que o próprio sonho, sabia-me no caminho certo de uma escolha feita em total consciência mas aberta a qualquer que pudesse ser o desfecho.

Talvez o único cenário que não fomos capaz de imaginar ou prever foi o que acabou por acontecer.

No dia anterior à celebração das 40 semanas gestantes, a bolsa rebentou e uma pequena inundação de madrugada anunciou o começo da viagem. A surpresa sobressaltada foi acolhida pelo parteiro do outro lado da linha: só de manhã voltaríamos a falar. Haveria que esperar o começo das contrações e o seu aproximar, seguindo o curso sereno do trabalho de parto habitual.

À noite passada em gestão de contrações sucedeu-se uma manhã de logística familiar, procurando o conforto e entrega do menino-filho de 2,5 anos que dormia no quarto ao lado. Na azáfama prática o cérebro tomou o leme e o corpo-sentido parou. Pararam as contrações, parou o desconforto e, não fosse pelas perdas de água que persistiam com os esforços, dir-se-ia mudado o rumo da viagem tão aparentemente iminente.

Por dentro instalou-se uma espécie de desilusão desapontada, como um guião sem continuidade, e decidimos usar o tempo meio desnorteado para mergulhar em algo que ocupasse horas e mente: conduzimos 20 minutos e chegámos à praia de sempre, com um pingo e um livro para cada um. O olhar nas ondas Atlânticas, a brisa morna de finais de setembro na pele, o sol convidando à calma, ao saboreio, ao estar. Passaram-se talvez duas horas. Um casal plantado numa esplanada à beira mar a ler e observar(-se), uma vida a preparar-se para chegar. 

Durante tempo contactei várias Mulheres-guerreiras da minha vida. Anunciei-lhes o estado da viagem e pedi-lhes companhia. As mensagens foram chegando, reforçado também o meu próprio poder através da força que me ia chegando de cada uma. Senti-me várias, sintonizando devagar com o todo da Humanidade que vem dando vida. 

A sós, caminhei na areia quente e mergulhei os pés na ida e vinda das ondas. Fiquei. Despedindo-me do estado de graça que daria lugar a um novo estado, desconhecendo a forma que esse adotaria mas confiando no que quer que me estivesse reservado. Confiando.

Inesperadamente o meu corpo recomeçou a receber contrações. Pulsões de vida que despertavam no meu útero a energia necessária à travessia de um bebé que eu sabia bem, através de todos os exames feitos mas também pela dança bonita com que se anunciava ao longo dos meses.

Rumámos a casa, numa viagem que pareceu mais infinita do que a ida, fechando os olhos a cada experiência de dor sentida nos paralelos da estrada. Um nervoso miudinho que anunciava o avanço. 

A hora de almoço tinha passado inadvertida e, apesar da comida agarrada na pressa do caminho estar posta sobre a mesa, já foi só um de nós a desfrutar dela. De pé, em franca e acelerada dança rítmica entre contrações, já só procurava posturas que me permitissem respirar e atravessar cada uma. 

O parteiro avisado do avanço rápido estava já a caminho. Eu, já sentada no sofá da sala, já só me sentia concentrada em respirações e vocalizações suaves que permitissem a gestão de cada pico, sentindo o alívio e gratidão de cada vez que passavam. Familiar com o tipo de dor, focava-me sempre no mesmo: “Há um limite. E uma vez alcançado esse limiar de dor eu sei que decrescerá e voltarei a poder respirar normalmente.”. 

À minha volta, a dança logística desenrolava-se também. Os resguardos, as toalhas, o desinfetante, os lençóis iam sendo dispostos cuidadosa (e apressadamente), para que tudo estivesse a postos para a chegada do parteiro. Cada um de nós sabia bem o que fazer, as conversas tinham sido muitas e detalhadas. A logística estava clara e as expectativas de casal também.

Mais do que massagens ou alívios externos de dor eu tinha pedido espaço, escuta, acompanhamento com confiança e participação à medida dos sentires de cada momento.

Na clara aceleração do processo comecei a perceber que o curto intervalo entre contrações anunciava uma inesperada iminência da chegada de um novo bebé. Por momentos senti o medo a chegar-me à pele. O parteiro estava longe e tornava-se claro que não chegaria a tempo. Na última chamada que lhe fizemos, o medo nos meus olhos, disse-nos com voz calma mas presente: “Pelo que dizem eu não vou chegar a tempo, mesmo estando a voar para aí. Tém duas hipóteses: ou vão imediatamente para o hospital ou fazem isso acontecer a dois.”. Por momentos senti-me gelar. Aí estava o inesperado da vida a confrontar-nos com o impossível de prever. O medo intensificou. Mas imediatamente, dos olhos verdes à frente dos meus muito abertos chegou o solo firme. A dois. Estamos, seguimos, vamos. “Não impeças nada, não bloqueies nada, deixa vir. Estamos.”. E, perante o evidente e a segurança feita de terra firme à minha frente, não sem apreensão e com uma inesperada adrenalina por todo o corpo, permiti-me. 

A preparação da logística tinha terminado. Havia agora espaço para deixar rolar uma música simples e mais disponibilidade para acompanhar. Estar. Presente. A força em forma de união de dois adultos segurando uma transição.

As contrações, até ali tão geríveis com sons e respirares conscientes, atropelavam-se. Agarrei aquela mão tão perto da minha, fi-lo mais perto ainda.

Da dor intensa na posição de semi-deitada, passei com ajuda – passámos, dois corpos ainda unidos, embrionados – para o chão. Voou o longo vestido azul que me cobria o corpo de verão e da roupa interior só ficou o sutiã preto, esquecido. Joelhos apoiados no longo tapete escuro e macio, cotovelos apoiados no sofá cinzento, agarrando com força a almofada onde minutos antes apoiara a cabeça, entre respirações que pareciam já insuficientes para gerir a dor que aparecia quase sem intervalos.

De repente, o som da campainha. Chegava a boa amiga e fotógrafa que tinha sido avisada ao mesmo tempo que o parteiro mas vivia a menos  tempo de nós. Esperou em baixo até que, numa pausa do forte apertar de mãos, permiti ao companheiro a ausência de segundos para lhe abrir a porta e instalou-se quase sem a vermos. Sabia precisamente o que fazer e invisibilizou-se para captar a dança de vida.

O coração a mil. Sentia, na base daquele meu ventre carregador de vida, uma pressão forte e uma clara perceção de algo que se encaixava ou posicionava, tomando novo lugar. Algo em mim se abria mais e mais. Por dentro, uma espécie de incredulidade pelas circunstâncias e uma certeza pelo trajeto: era clara a proximidade da chegada, a vida estava a chegar-nos aos braços. 

E nesta posição, com a cabeça enterrada na almofada amarela, agarrada com a força de dor e garra, num silêncio absoluto, sem sons nem gemidos, senti que chegava. Olho para baixo e vejo: duas gotas de sangue inaugurando o branco do resguardo. Em mim uma explosão de certeza. 

Na dor e forte pressão que rompiam luz, ouço a voz-família, a voz-casa, dizer-me com um misto de confiança e alegria: “Está a chegar. Já vejo a mão!” (na altura nada me pareceu intrigante) Adaptado à minha posição para observar e acompanhar o processo, estava o meu par nesta dança, um iminente pai de dois, em tronco nu e disponibilidade total.

Foram 4 ou 5 os momentos claros de força extra que fizeram atravessar a cabeça com pequeno braço à frente, do novo ser. Aí pedi ajuda, duas mãos que agarrassem e ajudassem a saída veloz do resto daquele bebe de 2800 kg. Segundos breves e aí estava. Um choro que anunciava vida emergiu e eu virei-me num salto, esquecida da dor, na ânsia de o ver. Ali estava, entre mãos paternas, imaculado e redondo, um bebé nú recém-chegado à vida de fora.

Sorriso gigante entre choro infante e expressão firme de quem o tinha nas mãos.

Recém sentada, agarro-o com alma e levanto-o à altura do meu beijo, rompendo assim, inadvertidamente, o cordão que nos unia, enrolado no meu tornozelo. Espontaneamente, no voo para os braços-colo que o desejavam, rompeu-se aquele cordão que desejaria ter deixado intacto por tanto tempo quanto necessitasse para se esvaziar do sangue que continha. Mas o vermelho vivo começou a deslizar pela pele daquele ventre já vazio e o que dele restava era clampado de forma improvisada com uma mola de fechar plásticos rapidamente desinfetada. Tudo isto numa dança quase invisível de um companheiro que se fizera parteiro do próprio filho em questão de minutos. Já com o pequeno ser colado à pele, protegido por um tecido de algodão suave e por uma temperatura morna de fim de tarde que embalava aquela sala, olhámo-nos e celebrámos, mãos que chocam no ar em sorriso-gargalhada e que celebram momentos-zero que já nascem cheios de tudo!

O parteiro chega às 18 horas e conhece o pequeno menino com 20 minutos de vida, agarrado já a uma mama que aprende a conhecer.

Nos seus olhos azuis de quem correu tudo o que pôde, há uma confiança que apazigua e empodera. Uma espécie de mensagem silenciosa que diz sem dizer “Foi a VOSSA viagem. Sabia que a fariam em segurança e beleza. It’s your party”, como dizia frequentemente.

Com ele trouxe não só a mala e o conhecimento para verificar e continuar o processo, mas a validação de tudo o que estava feito e a serenidade sobre a qual pudemos finalmente descansar. 

A placenta saiu com a sua respeituosa ajuda e foi-nos mostrada em pormenor. Aquela casa de 9 meses daquele ser de 48 cm que agora já se encolhia fora dela, nos braços de um pai que o aquecia no peito nú.

O meu corpo é observado e cuidado: nenhuma dilaceração do tecido perineal, uma pequena hemorroida curiosa. Quase nenhuma perda de sangue,e energia rapidamente recuperada.

Muita água de côco, uma barra energética e um primeiro duche, guiado à saída e à entrada pelo parteiro cuidador. Em mim, de pé naquela banheira, a água quente a limpar e a celebrar. A sentir o poder da travessia escorrer-me pela pele, entrar-me pelos poros, instalar-se. Capaz. Sorriso.

Passaram-se duas horas nesta atmosfera acompanhada, ainda carregada de potência respirada e do deslumbre com uma nova criatura a estrear cá fora. A amiga fotógrafa partilha o minuto exato do nascimento, dado pelo clic da fotografia-chave que inaugura o corpo inteiro fora da sua casa gestante. 5 imagens, foi tudo o que registou entre o começo da saída e a saída efetiva. A rapidez objetivamente comprovada. Rimos juntos. 

Só algumas horas mais tarde veríamos também, nas fotos que enviaria entretanto, o particular processo de nascer de mão à frente, colocada ao lado do rosto, esticada, qual super homem voando em elevados céus, bem como o romper espontâneo do cordão umbilical, através do meu rápido movimento giratório para finalmente ver e segurar em braços esse ser recém saído de mim. Agradecemos, ao ver de fora essa história visual, a decisão de ter como companhia e testemunha esta fotógrafa documentalista.

Pouco a pouco, no fechar do dia, regressa a normalidade. Avisam-se alguns familiares e amigos através de um vídeo simples feito no sofá, onde, sentados, seguramos uma ampliação de família contra o peito e sorrimos, em claro desfrute sossegado.

O filho-menino é também avisado. Preparando-se já para dormir 3 andares abaixo, na casa da vizinha e grande amiga que nos prolongava a sensação de cuidado: não só nos recebia e mimava o filhote-menino como nos deixava à porta a canja de galinha caseira preparada durante o dia pela sua própria mãe. 

Nascia e reforçava-se naquela casa, o sentido de comunidade tão necessário a uma harmonia de processos que só em conjunto e colaboração fazem sentido.

Porque efetivamente, “ninguém nasce sozinho”, ali estávamos, naquela sala, 3 humanos e toda a rede invisível que os sustentava. No momento de recolher à cama, para o descanso possível, há no ar, em geral, um misto de cuidado e celebração. Há riso, há WOW, há gratidão, há naturalidade e suavidade, há evidência. 

Há duas mãos de amantes loucos que duplicam amor e reforçam confiança na viagem a dois e um bebé-menino que nasce filho, irmão, neto, sobrinho, cidadão inteiro em si.

Há também uma espécie de invisível força que se multiplica num “obrigada” mútuo sincero e sentido. 

Confiar é saber entregar-se e a prova dorme ali, nos nossos braços.

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